de Herman Rosenblat

 

 

Naquela manhã o céu estava sombrio, enquanto esperávamos ansiosamente. Todos os homens, mulheres e crianças do gueto judeu de Piotrkow na Polônia foram arrebanhados em uma praça.

Espalhou-se a notícia de que estávamos sendo removidos. Meu pai havia falecido recentemente de tifo, que se alastrara através do gueto abarrotado. Meu maior medo era que nossa família fosse separada.

“O que quer que aconteça,” Isidore, meu irmão mais velho, murmurou para mim, “não lhes diga a sua idade. Diga que tem dezesseis anos”.

Eu era bem alto, para um menino de 11 anos, e assim poderia ser confundido. Desse jeito eu poderia ser considerado valioso como um trabalhador.

Um homem da SS aproximou-se, botas estalando nas pedras grossas do piso. Olhou-me de cima a baixo e perguntou minha idade.

“Dezesseis”, eu disse. Ele mandou-me ir à esquerda, onde já estavam meus três irmãos e outros jovens saudáveis.

Minha mãe foi levada para a direita com outras mulheres, crianças, doentes e velhos.

Murmurei para Isidore, “Por quê?”

Ele não respondeu.

Corri para o lado da minha mãe e disse que queria ficar com ela.

“Não,” ela disse com firmeza.

“Vá embora. Não me aborreça. Vá com seus irmãos”.

Ela nunca havia falado tão asperamente antes. Mas eu entendi: ela estava me protegendo. Ela me amava tanto que, apenas esta única vez, ela fingiu não fazê-lo. Foi a última vez que a vi.

Meus irmãos e eu fomos transportados em um vagão de gado até a Alemanha.

Chegamos ao campo de concentração de Buchenwald numa noite, semanas após, e fomos conduzidos a uma barraca lotada. No dia seguinte recebemos uniformes e números de identificação.

“Não me chamem mais de Herman”, eu disse aos meus irmãos. “Chamem-me 94938”.

Colocaram-me para trabalhar no crematório do campo, carregando os mortos em um elevador manual.

Eu também me sentia como morto. Insensibilizado, eu me tornara um número.

Logo meus irmãos e eu fomos mandados para Schlieben, um dos sub-campos de Buchenwald, perto de Berlim.

Numa manhã eu pensei que ouvi a voz de minha mãe.

“Filho” ela disse suave mas claramente, “Vou mandar-lhe um anjo”.

Então eu acordei. Apenas um sonho! Um lindo sonho!

Mas nesse lugar não poderia haver anjos. Havia apenas trabalho. E fome. E medo.

Poucos dias depois, estava caminhando pelo campo, pelas barracas, perto da cerca de arame farpado, onde os guardas não podiam enxergar facilmente. Estava sozinho.

Do outro lado da cerca, eu observei alguém: uma pequena menina com suaves, quase luminosos cachinhos. Ela estava meio escondida atrás de uma bétula.

Dei uma olhada em volta, para certificar-me de que ninguém me viu. Chamei-a suavemente em Alemão. “Você tem algo para comer?”

Ela não entendeu.

Aproximei-me mais da cerca e repeti a pergunta em Polonês. Ela se aproximou. Eu estava magro e raquítico, com farrapos envolvendo meus pés, mas a menina parecia não ter medo. Em seus olhos eu vi vida.

Ela sacou uma maçã do seu casaco de lã e a jogou sobre a cerca.

Agarrei a fruta e, assim que comecei a fugir, ouvi-a dizer debilmente, “”Virei vê-lo amanhã”.

Voltei para o mesmo local, na cerca, na mesma hora, todos os dias. Ela estava sempre lá, com algo para eu comer – um naco de pão ou, melhor ainda, uma maçã.

Nós não ousávamos falar ou demorarmos. Sermos pegos significaria morte para nós dois.

Não sabia nada sobre ela, que parecia uma menina de fazenda, exceto pelo fato dela entender Polonês. Qual era o seu nome? Por que ela estava arriscando sua vida por mim?”

A esperança estava naquele pequeno suprimento, e essa menina do outro lado da cerca trouxe-me um pouco, como que nutrindo dessa forma, tal como o pão e as maçãs.

Cerca de sete meses após, meus irmãos e eu fomos abarrotados num vagão de carvão e enviados para o campo de Theresiensatdt, na Tchecoeslováquia.

“Não volte”, eu disse para a menina naquele dia. “Estamos partindo”.

Voltei-me em direção às barracas e não olhei para trás, nem mesmo disse adeus para a pequena menina, cujo nome eu nunca soube, a menina das maçãs.

Permanecemos em Theresienstadt por três meses. A guerra estava diminuindo e as forças aliadas se aproximando, muito embora meu destino parecesse estar selado.

No dia 10 de maio de 1945 eu estava destinado a morrer na câmara de gás, às 10:00 horas.

No silencioso crepúsculo, tentei me preparar. Tantas vezes a morte parecera pronta para me receber, mas de alguma forma eu havia sobrevivido. Agora, tudo estava acabado.

Pensei nos meus pais. Ao menos, pensei, nós estaremos nos reunindo.

Mas, às 08:00 horas ocorreu uma comoção. Ouvi gritos, e vi pessoas correndo em todas as direções através do campo. Juntei-me aos meus irmãos.

Tropas russas haviam liberado o campo! Os portões foram abertos. Todos estavam correndo, então eu corri também. Surpreendentemente, todos os meus irmãos haviam sobrevivido.

Não tenho certeza como, mas sabia que aquela menina com as maçãs tinha sido a chave da minha sobrevivência.

No local onde o mal parecia triunfante, a bondade de uma pessoa salvara a minha vida, dera-me esperança num lugar onde ela não existia.

Minha mãe havia prometido enviar-me um anjo, e o anjo apareceu.

Eventualmente, encaminhei-me à Inglaterra, onde fui assistido pela Caridade Judaica. Fui colocado numa hospedaria com outros meninos que sobreviveram ao Holocausto e treinado em Eletrônica. Depois fui para os Estados Unidos, para onde meu irmão Sam já havia se mudado. Servi no Exército durante a Guerra da Coréia, e retornei a Nova Iorque, após dois anos.

Por volta de agosto de 1957 abri minha própria loja de consertos eletrônicos. Estava começando a estabelecer-me.

Um dia, meu amigo Sid, da Inglaterra, me telefonou.

“Tenho um encontro. Ela tem uma amiga polonesa. Vamos sair juntos”.

Um encontro às cegas? Não, isso não era para mim.

Mas Sid continuou insistindo e, poucos dias após, nos dirigimos ao Bronx para buscar a pessoa do seu encontro e a sua amiga Roma.

Tenho que admitir, para um encontro às cegas, não foi tão ruim. Roma era enfermeira em um hospital do Bronx. Ela era gentil e esperta. Bonita, também, com cabelos castanhos cacheados e olhos verdes amendoados que faiscavam com vida.

Nós quatro nos dirigimos até Coney Island. Roma era uma pessoa com quem era fácil falar e fácil de se estar junto.

Descobri que ela era igualmente cautelosa com encontros às cegas.

Nós dois estávamos apenas fazendo um favor aos nossos amigos. Demos um passeio na beira da praia, gozando da brisa salgada do Atlântico, e depois jantamos perto da margem. Não poderia me lembrar de ter tido momentos melhores.

Voltamos ao carro do Sid, Roma e eu dividimos o assento traseiro.

Como judeus europeus que haviam sobrevivido à guerra, sabíamos que muita coisa fora deixada sem ser dita entre nós. Ela puxou o assunto, “Onde você estava”, perguntou delicadamente, “durante a guerra?”

“Nos campos de concentração”, eu disse. As terríveis memórias ainda vívidas, a irreparável perda. Tentei esquecer. Mas jamais se pode esquecer.

Ela concordou. “Minha família se escondeu numa fazenda na Alemanha, não longe de Berlim”, ela me disse. “Meu pai conhecia um padre, e ele nos deu papéis arianos.”

Imaginei como ela devia ter sofrido também, medo, uma constante companhia. Mesmo assim, aqui estávamos, ambos sobreviventes, num mundo novo.

“Havia um campo perto da fazenda”, Roma continuou. “Eu via um menino lá e lhe jogava maçãs todos os dias.”

Que extraordinária coincidência, que ela tivesse ajudado algum outro menino. “Como ele era?”, perguntei.

“Ele era alto, magro e faminto. Devo tê-lo visto a cada dia, durante seis meses.”

Meu coração estava aos pulos. Não podia acreditar.

Isso não podia ser.

“Ele lhe disse, um dia, para você não voltar porque ele estava saindo de Schlieben?”.

Roma me olhou estupefata. “Sim!”.

“Era eu!”.

Eu estava para explodir de alegria e susto, inundado com emoções. Não podia acreditar! Meu anjo.

“Não vou deixar você partir”, disse a Roma. E, na trazeira do carro, nesse encontro às cegas, pedi-a em casamento. Não queria esperar.

“Você está louco!”, ela disse. Mas convidou-me para conhecer seus pais no jantar do Shabbat da semana seguinte.

Havia tanto que eu ansiava descobrir sobre Roma, mas as coisas mais importantes eu sempre soube: sua firmeza, sua bondade. Por muitos meses, nas piores circunstâncias, ela veio até a cerca e me trouxe esperança. Não que eu a tivesse encontrado de novo, pois na minha mente eu jamais a havia deixado partir.

Naquele dia ela ela disse sim. E eu mantive a minha palavra. Após quase 50 anos de casamento, dois filhos e três netos, eu jamais a deixara partir.

Herman Rosenblat de Miami Beach, Florida.

Esta é uma história verdadeira que está sendo transformada num filme, chamado “A flor da cerca” (“Flower of the Fence” em inglês). Veja mais sobre a história e o filme no site www.atlanticoverseaspictures.com [Esta tradução foi recebida de um leitor, depois revisada e corrigida. Autor original desconhecido.]


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